ENTREVISTA

Metamorfose Ambulante

O músico Siba responde a cinco perguntas sobre a nova fase de seu trabalho
por Redação da Revista BRAVO!
No disco Avante, Siba deixa a rabeca de lado e adere à guitarra  - Foto: Rodrigo Fonseca
O cantor recifense acaba de ancorar na capital paulistana. A mudança não foi só geográfica. No novo disco, Avante, Siba deixa a rabeca de lado e adere à guitarra, depois de vinte anos imerso em ritmos mais tradicionais como o maracatu, a ciranda, entre outros.
Leia o breve questionário que elaboramos para o compositor, ex-líder da Fuloresta do Samba e do Mestre Ambrósio:
Você acaba de voltar para São Paulo depois de um longo período em Nazaré. De que forma essa mudança refletiu em seu trabalho?
Não dá para desassociar os dois fatos. Tudo vem junto para mim: a vida, o que estou fazendo no momento, onde moro e com quem trabalho. Embora o senso comum possa apontar para um álbum mais elétrico, pelo fato de eu estar em São Paulo, o que acontece é o contrário. As mudanças da minha música e da minha concepção como artista me trouxeram pra cá. Além de eu gostar demais da cidade e também ter todos meus amigos aqui, o estilo de vida de São Paulo me agrada muito. Tudo isso junto me trouxe de volta.
Você disse que em Nazaré a música não era só um produto, era vivida e criada no dia-a-dia. Tem algum lugar em São Paulo onde você se inspira ou cria?
A inspiração relacionada a algum lugar não é, para mim, determinante. O que existe é uma relação de confluência entre o momento, o tempo e o espaço onde você está. Ela pode ou não criar uma situação que de alguma forma ilumine o seu processo criativo. A cidade de São Paulo me abre muitas portas profissionais e é um lugar que me possibilita um tipo de vida pessoal muito agradável e confortável. Por isso me inspiro aqui. Além do que, um lugar que essencialmente tem que me estimular sempre – e eu cuido para que seja assim – é a minha casa. Onde quer que ela esteja, é a principal fonte.
Quando saiu do Nordeste, você se questionava que artista era e que tipo de música queria. Hoje essas questões já foram respondidas?
Elas estão sempre na mesa, são as primeiras questões que tento me colocar. Nunca vão ser completamente respondidas, pelo menos espero, pois é isso que faz com que eu consiga me movimentar de tempos em tempos. No momento, a resposta é o meu trabalho, principalmente o show, que acontece a partir do disco, da sua concepção, e que vai ter uma vida de alguns anos. A partir disso, as questões se renovam, surge a busca para um novo momento que virá num futuro próximo.
Ulisses foi o primeiro herói do seu filho. Qual foi o seu primeiro herói?
Pergunta difícil. Não sei exatamente, talvez o meu avô, um senhor que eu e a família inteira admirávamos muito. Era um tipo de herói distante, um agricultor de setenta anos na época. O que tenho certeza é de que ele e meu pai foram os primeiros. Agora, o de fantasia talvez o Lampião, porque era uma figura do imaginário heroico do ambiente em que eu vivia.
Tem algum fã, alguém que você saiba que gosta da sua música, e que você admire também?
Complicado, pois vou ter que dizer que alguém é meu fã, uma posição meio curiosa. O que posso dizer é que a Céu assumidamente admira meu trabalho e que é uma pessoa que admiro muito no cenário atual da música brasileira.

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO: UM POETA NO JARDIM DA IMENSIDÃO


Por Maurício Melo Júnior, Lima Trindade, Vitor Nascimento Sá, Mariana Ianelli e Igor Fagundes



José Inácio Vieira de Melo acaba de lançar seu quinto livro de poesia: Roseiral. Cantado por Myriam Fraga, Astrid Cabral, Maria da Conceição Paranhos e Eliana Mara Chiossi nos textos da contracapa, orelha e posfácio, o poeta faz de seu universo um imenso jardim. Vermelho. E lança pedras como se fossem pétalas. Com a mesma disposição de Davi frente ao gigante, alça sua voz singular sobre os telhados do mundo. Nesta entrevista, ele nos fala de suas influências, processo criativo, sonhos, sertões, inveja e muitos outros assuntos ligados à arte de escrever e viver. Paremos para ouvi-lo.


MAURÍCIO MELO JÚNIOR – Seu novo livro, Roseiral, seguindo a trilha de sua obra, é um diálogo entre o moderno e o arcaico. O que esperar de novo nesta conversa já tão antiga?

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Embora compreenda “que o novo sempre vem”, os anseios por novidades a qualquer custo não me atraem. Ainda mais quando me lembro dos versos de Sierguei Iessiênin, que dizem “Se morrer, nesta vida, não é novo,/ Tampouco há novidade em estar vivo”. O que me faz recordar também de um velho adágio popular: “Abaixo do céu e acima da terra, não há nada de novo”.
O que busco é dizer as coisas de uma forma que ao menos soe pessoal. Busco expressar meus sentimentos de uma maneira que possam despertar emoções no outro, mas quando o faço, não penso no outro. Faço poesia por uma necessidade vital. Claro que existe uma preocupação estética. E nesse aspecto, como você já observou, dialogo com a tradição. Penso que ninguém cria uma obra do nada. Por mais inovadora que ela seja, sempre apresentará pontos de convergências com outras preexistentes. Acredito mesmo que as referências sejam salutares para que se possa criar algo valoroso. Quanta ‘obra de vanguarda’ não perdura mais que uma semana? A cada esquina aparece um poeta que se intitula ‘inventor’. Isso só acontece porque esses vanguardosos, que buscam a novidade desesperadamente, não leem. Uns porque não gostam de ler, outros para não verem suas ‘obras’ serem influenciadas. E, por conta dessa ignorância, apresentam pastiches de quinta categoria do que já foi feito a cem ou duzentos anos.
Eu, particularmente, não acredito em escritor que não lê literatura. Vanguarda para mim tem que ser como Dom Quixote. E foi dessa conversa tão antiga entre Cervantes e José Lins do Rêgo que surgiu o Capitão Vitorino. Foi da conversa antiga de Lima Barreto com Cervantes que surgiu Policarpo Quaresma. E foi assim, sem querer inventar a rosa, que surgiu o meu Roseiral. Em um diálogo com os poetas que admiro e com os que vou conhecendo na minha caminhada pela existência. Ah, nada como uma prosa boa para despertar a poesia da vida!

LIMA TRINDADE – Você não inventa a rosa, mas anuncia, desde a epígrafe de Gertrude Stein, que a rosa vive e respira independente de nossas vontades, e que podemos, sim, olhar a rosa, sentir o seu odor e colher, por meio de nossos sentidos, seus múltiplos significados. Poderíamos afirmar, então, que você re-inventa a rosa? Que sua rosa é uma e nenhuma mulher, é começo e fim, amor e morte, matéria e sonho, paraíso e danação?

JIVM – Embora tudo – nos tempos e pelos tempos – seja tão semelhante, cada momento é singular. A cada instante construímos relações que vão compondo o que somos. Somos uma invenção que está constantemente a se reinventar. Nesse sentido, o Roseiral é invenção e re-invenção. A epígrafe inicial do livro, como você bem observa, aponta para isso, que uma rosa é tão-somente uma rosa, mas é também toda a possibilidade de criação. É o Jardim do Éden, do qual nos fala aBíblia, é o Jardim das Delícias, de Bosch, o Jardim das Acácias, do Zé Ramalho, são meus jardins dos Mandacarus e das Algarobeiras e, finalmente, é Roseiral – o jardim da imensidão. Eu me invento dentro desse Roseiral. Suas rosas são brasas. Suas pétalas, pedras que jogo na cabeça de Deus e de quem estiver pela frente, para que jorre a seiva escarlate e assim eu possa ver o mundo encarnado. Para além de uma elegância asséptica, busco colocar em meus versos a força do animal humano, persigo os aromas e os matizes do barro em que foi moldado.
Há um poema no livro, intitulado “Invenção da poesia”, que explicita bem as proporções do Roseiral, a partir da estrofe inicial, que diz “Pele vestida, distribuída e refeita,/ parto para o princípio do labirinto”. Mas, logo em seguida, afirma: “Parto e principio o labirinto”. O Roseiral é um jardim, porém o seu elemento ordenador não é a plenitude, é a inquietação. É a busca da origem, da Rosa Mística, que inicia quando partimos à procura do princípio do labirinto. Acontece que, quando partimos, damos início ao nosso labirinto. O meu Roseiral é um labirinto. E, como não preciso de justificativa, “parto,/ que a peripécia não é chegar,/ que o coração só tem um fim:/ ao som do coro das sereias/ cantar o ciclo da origem”.

Astrid Cabral e Eliana Mara Chiossi avaliam esteticamente o mais novo livro de Vieira de Melo

VITOR NASCIMENTO SÁ – A leitura de Roseiral deixa evidente uma preocupação em concatenar os poemas de um modo que a obra se torne uma espécie de organismo coeso, ou pelo menos se assemelhe a isso. Essa impressão nos é transmitida tanto no campo formal como no temático. Certamente, é luta árdua – e vã – ter controle exato sobre o que se escreve e impor-lhe uma linha coerente, uma espinha dorsal, por assim dizer. Coube a você decidir que rumo a escritura tomaria durante todo o processo ou os poemas se impuseram, um a um, ordenando-se acidentalmente? Até que ponto, essa seleção e ordenamento foram intencionais e conscientes?

JIVM – Sua pergunta é curiosa, porque o Roseiral surgiu de um sonho, de um lance de pétalas. Os ventos dadaístas, anunciados no poema “A casa dos meus quarenta anos”, visitaram-me numa certa noite, lá na Pedra Só, minha roça, e me vi como um condenado a fazer versos bem diferentes dos que estão presentes na minha produção anterior. E, logo de cara, o nome se impôs: Roseiral (Ah, quantas críticas sofri por causa desse título!). E os poemas só falavam em rosas, em mulheres, em sangue, em pedras. Logo em seguida, soube que um amigo, dos tempos de adolescência, havia cometido suicídio com um tiro, de revólver calibre 38, na cabeça. Na hora veio a imagem de uma rosa de sangue brotando violentamente da sua face. E pensava num belo roseiral escarlate nascendo em cima de um lajedo. Era uma loucura e eu não sabia que rumo daria para essa produção. O engraçado é que boa parte desses poemas foi feita com versos medidos, visitando desde as redondilhas até o alexandrino e, principalmente, o decassílabo.
No capítulo “Roseiral” há seis sonetos brancos. Mas, se algum purista – defensor rigoroso da predominância do decassílabo heróico e perseguidor das rimas raras – pegar esses poemas para ler, vai ficar apavorado, porque, além de colocar simultaneamente no mesmo soneto o decassílabo heróico, o decassílabo de gaita galega, o de arte maior, o sáfico e o de inclinação provençal, evito os preciosismos professorais. Dialogo com a tradição, mas não pretendo ser Olavo Bilac. Ao invés de ficar queimando as pestanas para fazer pastiche de quinta categoria dos poetas que me antecederam, estou explorando e experimentando. Estou fazendo meu caminho.
Paralelo a esse acontecimento das rosas, surgiram uns poemas extremamente agressivos, despudorados e violentos, que tinham endereço certo: o patriarcalismo que sempre esteve de sentinela, a massacrar as diferenças e moldá-las à sua imagem e semelhança. Na mesma linha do despudor, surgiram uns poemas eróticos que eu jamais imaginei que teria coragem de publicar.
Como pode perceber, no começo não houve nenhuma possibilidade de ordenação, pois os poemas surgiram em grupos e aos borbotões. Com o passar do tempo – meses e meses – é que fui percebendo que determinado poema não cabia naquele conjunto, mas se adequava ao outro. E a arrumação ficou de tal maneira que os capítulos desenvolvem um andamento, como se estivesse fazendo um percurso, que começa no terreiro de pedras e que leva ao jardim, labirinto escarlate por onde se faz a travessia para alcançar a calçada da juventude e, finalmente, chegar à casa da maturidade. Mas acho também que cada capítulo, ou mesmo cada poema, pode ser lido separadamente, sem que haja necessidade de traçar um roteiro.

MARIANA IANELLI – Vejo que o poeta que anunciava a calmaria, em A infância do Centauro, agora se descobre, em Roseiral, no centro de uma vertigem. Nesse magma de criação, destruição, recriação, o poema, ainda que muitas vezes assuma o tom imprecatório, ainda assim, é uma rosa, uma revanche da vida. Não será este o grande desafio do poeta, hoje, transmudar pedras em pétalas, fazendo prevalecer o amor e a beleza sobre o golpe de violência?

Roseiral - o mundo encarnado pela seiva das rosas escarlates

JIVM – O segredo que a rosa preserva alimenta a minha fome de descoberta, a minha sede de beleza. Há algum tempo, afirmei em uma entrevista que poesia para mim é salvação. É nisso que acredito. Além de uma questão de fé, é também uma constatação, pois sem a poesia eu não conseguiria sobreviver. Também professo a beleza, mas nem sempre os aspectos positivos de um determinado assunto, sejam a grandeza, a novidade e a beleza, conseguem emoldurar a expressão que se originou no eu poético. O que me leva a pensar que não existem assuntos poéticos e assuntos não poéticos. Tudo cabe na poesia, do preço do feijão até as tragédias que assolam a humanidade. O triste fim de Heitor, dedicado pai de família e guerreiro ideal, pelas mãos do implacável e furioso Aquiles, não tira a beleza dessa passagem da epopéia de Homero.
Por falar em beleza, lembrei-me de Rainer Maria Rilke, quando diz nas Elegias de Duíno: “Pois o belo não é/ Senão o início do terrível”. E quantas vezes nos deparamos perplexos e assustados diante de uma situação, ou mesmo depois de ler um poema ou depois de ver um filme, e dizemos: Que coisa terrível! E é como se disséssemos: Que beleza! O Raimundo Fagner cantava para a minha adolescência uns versos de Antonio Brandão que me marcaram muito: “Beleza só depois de uma sangria desatada”. Não que seja masoquista, mas o sofrimento chega e entra sem pedir licença. Mesmo assim, é preciso reagir e abraçar a tarefa de transformar pedras em pétalas. Só que os olhares estão presos na vitrine, as pernas correndo atrás do carro novo, o pensamento está se especializando em conhecer cada vez mais sobre cada vez menos. E aí não há espaço para essa discussão. Então, só uma pedrada certeira para despertar a aurora das ideias.

IGOR FAGUNDES – Tanto em seus poemas quanto na entrevista, nestas suas respostas que jamais deixam de trazer o calor e o sol de um poema, como se também o fossem, ouvimos a voz dos deuses a saltar de sua boca. Em geral, quando um poeta dialoga vigorosamente com os mitos gregos, e assumindo que seria o seu caso, de imediato a crítica apressada o qualificaria (depreciativa ou elogiosamente) como erudito – poeta para poetas e não para o povo. Mas, de repente, temos um José Inácio Vieira de Melo entre algarobeiras da roça, entre o sertão e o agreste brasileiros, a chamar palavras como quem chama a seus bois, tão capaz de abraçar e comover um não-letrado quanto uma fazenda de gado o é. Um José Inácio Vieira de Melo a lembrar-nos que falar em gregos nada tem de impopular e letrado, se ali, entre os rapsodos e cantores da Grécia, tudo é corpo e oralidade, palpitando entre os homens comuns, ou melhor, incomuns. Já lhe perguntaram, aqui, acerca da convergência entre o moderno e o arcaico; contudo, penso que toda esta mitologia não apenas desfaça tal dicotomia ao derrubar a linearidade do tempo na revelação do que permanece contemporâneo, isto é, um presente jamais ultrapassável. Para além dessa dimensão temporal, imagino que, em seus versos, punge também a dimensão espacial desta mítica que entrevê na terra particular e brasileira, a terra universal. No lugar específico, o sem-lugar que abisma todas as terras. Quero, com tudo isso, chegar a uma questão: à sua habilidade de tornar o José Inácio particular e distinto em um Vieira de Melo universal, indistinto, abismal, de maneira que a história de vida do indivíduo que escreve se apresente em seus poemas com tal força, que ela mesma se torna um mito, uma mitologia para nós e em nós, seus leitores. O homem que escreve não se transforma apenas em um eu lírico que o transfigura ou dele diverge. O eu lírico também transforma este homem em certa divindade – no sentido grego e, portanto, originário. Afinal, tanto “A casa de meus quarenta anos” quanto “A calçada dos meus quinze anos” parece valer como oráculo para todos os que com seu Delfos se consultam. Diante disso, gostaria de saber se acredita que, em toda arte, o biográfico, para ser poesia, precisa deixar de sê-lo e, a partir daí, que discutisse até que ponto a potencialização, ou a superlativação, ou a transmutação de uma biografia contribuem para a mitificação da figura não do poeta, mas do homem que se lhe antecipa e nele se eleva.

JIVM – Rapaz, você foi longe... Mas eu estou aqui bem pertinho de uma algarobeira, sentido a brisa do sertão. Confesso que para mim é um tanto difícil explicar por qual mecanismo minha vida se apresenta na minha poesia. Mas, por outro lado, fica bem fácil quando sei que, para mim, não existe um José Inácio das obrigações cotidianas e, em separado, um Vieira de Melo poeta. Eu sou José Inácio Vieira de Melo por inteiro. Sou completamente poeta, embora saiba que não seja um poeta completo, pois sempre há searas a conhecer. Sinto que sou poeta 25 horas por dia. Não consigo dissociar minha vida da minha poesia. Sei que existem poetas bem mais competentes que eu, com uma obra mais consolidada que a minha, que não fazem o estardalhaço que eu faço. Ficam ali, recolhidos na tranquilidade, para lembrar de Wordsworth, e poucos sabem do seu ofício de poeta. Eu não. Por onde passo, deixo o rastro do poeta. E mesmo os que não entendem bem do que se trata dizem logo: “ele é poeta”, sem que haja nenhuma intenção de valoração.
Vivo pensando a poesia que me é possível o tempo inteiro. Mas, por mais intensa que seja essa relação, por mais próxima que seja do que sou, ainda assim, não é o que sou. Esse sujeito que está o tempo todo dentro da minha poesia, que se parece tanto comigo, sou eu mesmo tentando me autenticar dentro do poema, dentro da arte. Mas, ainda assim é uma representação. É um eu lírico idealizado, que vai pedir bênção aos mitos, sobretudo os gregos e hebraicos, para se perpetuar dentro de uma tradição. Não que o biográfico não esteja presente, mas há um somatório de referências, há enxertos de ficção que superlativizam o biográfico e potencializam o mito. A partir daí, a figura humana é investida por uma couraça do imaginário, pelo poder da criação, que pode lhe conferir heroísmo e até mesmo o deificar. O homem que sou, e que se diz poeta o tempo inteiro, não consegue acompanhar o eu poeta na escalada rumo às esferas do delírio, por maior que seja a sua vigília. No entanto, as pedras que são atiradas no poeta, essas recebo todas. Em dobro, até.
No que se refere aos mitos, sempre achei que são coisas do povo. De um lugar para outro, de uma época para outra, mudam-se os nomes, mas são as mesmas figuras mágicas que vêm atender as necessidades de milagres e de punições das tribos, dos povos. Apesar do diálogo com os mitos gregos, sinto-me um poeta de inclinação bíblica, um pastor de nuvens e de versos. Os meus livros anteriores devem tributo ao poeta Davi, o salmista. Já neste Roseiral, os Cânticos dos Cânticos de Salomão são uma referência mais próxima. A seiva das rosas escarlates do Roseiral trouxe um novo tônus para minha poesia.

MAURÍCIO MELO JÚNIOR – Tenho uma visão até óbvia de sua poesia: a forte presença da terra, do semear. E isso é um jeito meio esquecido pelos poetas contemporâneos, tão urbanos e violentos. Você é sertão, só que se conhece uma infinidade de sertões metafóricos – Zé Limeira, João Rosa, Zé de Alencar, Rachel, Mestre Graça, Cabral –, enfim, onde se localiza sua geografia íntima?

JIVM – Pois é, o sertão é o mundo, como nos ensina o Mestre Rosa. Por outro lado, o bardo cantador Elomar traz notícias de um sertão profundo, de dentro. A minha geolírica situa-se nessas plagas das quais falam João Guimarães Rosa e Elomar Figueira Mello. Um sertão íntimo, de dentro, tão intenso, que faz com que para onde eu olhe vislumbre o sertão planetário do poeta Gerardo Mello Mourão, a roça de estrelas de José Chagas e de Jorge de Lima. O sertão cósmico de Roberval Pereyr e de Antonio Brasileiro.
A minha geografia íntima é abismal e localiza-se no terreiro do meu ser – bem longe da balbúrdia dos modismos. Deitado nas relvas de Whitman, de dia pastoreio nuvens – de Pessoa e de Davi – no curral da imensidão azul. À noite, do balanço da rede, cultivo as estrelas nos labirintos de Borges, que trazem brilho, inquietação, suspiro, inspiração. O sopro lírico de Drummond e de Ruy Espinheira Filho. Cada estrela tem nome de poeta – Bandeira, Lorca, Kaváfis, Rilke, Murilo – e faz parte de uma constelação. Misturam-se e renovam-se. Morrem e renascem. E continuam. Tantas e tantas. Os que citamos e mais Herberto Helder, Cecília Meireles, Alberto da Cunha Melo, Maria da Conceição Paranhos, Francisco Carvalho, Myriam Fraga, Wilmar Silva, Mariana Ianelli, José Alcides Pinto, Astrid Cabral, Alexandre Bonafim e vários outros.

LIMA TRINDADE – Sinto que a ocupação desses diversos topos – como no caso do sertão (interior e exterior) e do urbano, da mistura de matizes eruditas e populares, da influência da cultura de massa em todas as esferas, do surgimento de novas configurações políticas e comportamentais – marca a literatura contemporânea e também a sua poética, que não escolhe um único ponto de vista, mas múltiplos. Você concorda com essa afirmação? Enxerga singularidade na produção dos poetas desse início de século?

Nietzsche: “Somente quem tiver o caos dentro de si poderá dar luz à grande estrela bailarina”.

JIVM – A contemporaneidade jogou o ser no cerne do caos. Vivemos num globalitarismo que coloca todos em um suposto pé de igualdade, que relativiza as culturas em nome de uma cultura global. Mas sabemos que isso tudo é uma falácia. O que se percebe mesmo é a imposição de uma cultura dominante que determina comportamentos e estabelece padrões.
A poesia, como toda arte, questiona, subverte, mostra possibilidades para novos caminhos. E não é de se estranhar que, nesses tempos de indagação, o paradoxo seja a melhor afirmação a se oferecer. Não há muito que filosofar. Ninguém vai ficar se perguntando “quem sou eu?” no momento em que perde um braço. Mas o pior de tudo é que a maioria dos poetas – tão intrincados nos estudos culturais – está sem caminhos. Então, esses poetas, preferem ficar usando palavras soltas, mecânicas. Assemelham-se tanto aos robôs que os computadores parecem mais sensíveis. Seria preferível que se jogassem no abismo e bradassem humanamente. Talvez aí houvesse algum indício de liberdade para criar uma poesia que desperte emoção no leitor.
Mas nem tudo está perdido. Apesar de achar que é muito cedo para se falar em singularidade, existem poetas aflorando no alvorecer desse novo milênio que são avatares (para usar uma palavra que está em circulação). Poetas que não mataram a criança e que preservam suas humanidades. Não pense que sou apocalíptico. Apesar do momento caótico em que vivemos, comungo com Nietzsche quando afirma que “somente quem tiver o caos dentro de si, poderá dar luz a grande estrela bailarina”.

VITOR NASCIMENTO SÁ – Entre as pedras que são atiradas no poeta, obviamente, há a crítica negativa daqueles que resolveram se colocar na vida como seus adversários poéticos, se é que isso faz algum sentido. Quem acompanha de perto sua produção – seja a publicação dos cinco livros (incluindo Roseiral), seja a realização dos eventos literários e culturais ou a sua atuação na internet – sabe que há aqueles que vivem espreitando seus passos e fazendo um esforço tremendo para negar tudo, infamar ao máximo. Por outro lado, se levarmos em conta a idade de sua poética (aproximadamente uma década) sua fortuna crítica é imensa e chove comentários elogiosos de nomes consolidados. Como é viver, poeticamente, assim, entre a simpatia de tantos e a extrema ojeriza de alguns? O que você aguarda desses opostos com o lançamento de Roseiral?

JIVM – Olha, não tenho do que me queixar. Minha poesia tem merecido a atenção de nomes significativos da literatura brasileira, das mais diversas vertentes e de diferentes gerações, como você bem observou. Vai longe o tempo em que eu tinha uma preocupação em conseguir uma editora para publicar meus livros. Hoje em dia, os convites são vários. Na verdade, tenho aberto portas para outros poetas publicarem seus livros por editoras que garantem, ao menos, uma boa distribuição. E é bom lembrar que estamos falando de poesia, gênero que não desperta o interesse da grande maioria das editoras, por conta da falta de leitores e, consequentemente, pela falta de consumidores.
Existe, no estado da Bahia, meia dúzia de pobres diabos que, movidos por uma inveja corrosiva, estão empenhados em difamar a minha pessoa e de desmerecer a minha produção poética. Esquecem de trabalhar (e passam a roubar), esquecem de suas famílias (que, por sua vez, procuram alento em outros braços), esquecem de si próprios (alguns têm até o álibi de serem loucos) e se dedicam completamente ao José Inácio Vieira de Melo. Não sabem, coitados, o quanto contribuem para que, cada vez mais, meus versos ganhem espaço.
Para o Roseiral não aguardo nada. Não sou de esperar. Gosto do movimento, do ritmo, de andar, de fazer as coisas acontecerem. Por enquanto, há oito lançamentos marcados: Aracaju, Belo Horizonte, Salvador e cinco cidades do Vale do Jiquiriçá. De modo que não tenho tempo para desperdiçar com as bobagens dessa meia dúzia de delinquentes.

Rainer Maria Rilke: uma referência para o autor de Roseiral

MARIANA IANELLI – No poema "Fuga", um dos primeiros do livro, você fala do momento em que "o homem chega dentro da criança" e aparecem os "sonhos - fuzilados no horizonte". O poeta, aí, não apenas antecipa sua fuga, mas anuncia, creio eu, todo um processo de enfrentamento e assimilação de forças contrárias que viremos a acompanhar ao longo de todo o livro. Esse conflito com um "patriarcalismo", como você mesmo disse, poderia ser compreendido, a meu ver, como uma batalha que se passa internamente, uma batalha que, por ser sanguínea, abrasadora, desperta também seu correlato subversivo de erotismo e paixão. Sob esse ponto de vista, pode ser que nesta "odisseia", título, aliás, de uma das seções do volume, o poeta se transmude não em Ulisses mas em Telêmaco, em busca do pai, para enfrentá-lo, numa viagem poética rumo às origens que põe a salvo a criança dentro do homem. Na seção "A calçada dos meus quinze anos", que concentra os poemas talvez mais significativos dessa batalha, a representação do banquete ocorre em três poemas, um deles intitulado "Canibal", o que me faz pensar novamente em um processo de assimilação poética, e por que não dizer, de transubstanciação, como indicam os versos do poema "Vampiro": "Sim, beberei teu sangue / quão saboroso é o vinho / que corre em tuas veias". Isto me lembra o que dizia Nikos Kazantzakis, em Carta a El Greco, sobre o dever de "reconciliar os irreconciliáveis" e arrancar do fundo de si mesmo "as espessas trevas ancestrais para delas fazer luz". Kazantzakis se referia aos antepassados que combatiam dentro dele, a terra e o fogo: "bons camponeses" por parte de mãe, "corsários sanguinários" por parte de pai. Gostaria, na verdade, que você comentasse um pouco sobre esse conflito interno, se ele existe, e como você o reavalia, agora, tendo cumprido mais este "ciclo da origem" que sua voz, já desde os primeiros poemas de Roseiral, profetizava.

JIVM – Eu cresci marcado pelo signo da diferença. Somos cinco irmãos. Todos homens. Sou o terceiro. Na verdade, sou o sétimo, visto que minha mãe teve nove filhos. Cinco vingaram. Pois bem, a partir de meus sete anos, o refrão que mais escutei, e que perdurou até os 20 anos, quando vim morar na Bahia, foi: “– Esse menino é todo diferente dos outros!” E foi com sete anos que tive de descer do fusca e ficar sozinho na entrada da fazenda, que distava uns três quilômetros da sede. Eu até hoje me lembro do meu pasmo e do imenso abandono que senti. Meu avô Moisés, quando soube, saiu correndo ao meu encontro...
Na adolescência, quando estudava em Maceió e passava os finais de semana e as férias no interior, o fato de gostar de usar cabelos grandes – ah, como sinto saudades dos caracóis dos meus cabelos – distanciou-me ainda mais de meu pai, uma vez que fiquei impossibilitado de sentar à mesa na sua presença durante alguns anos. É aquela coisa lá do poema “Banquete”. Não é muito fácil falar dessas coisas. Pois é! Mas, para tentar limpar o sentimento, só enfrentando tudo isso. E oRoseiral veio na medida, passando o passado na lâmina.
Quero deixar bem claro que meu pai é um referencial de inteligência e de conquistas. O que ele queria era que eu o acompanhasse na sua luta desenfreada para vencer na vida. Se a minha história parece difícil, a sua é muito mais: criado por uma tia desde os dois anos, começou a trabalhar na infância, frequentou escola por menos de um ano em sua vida, casou aos 18 com uma menina de 14 que, desde os 11, era órfã de mãe. E me ofereceram do que tiveram – o abandono – e muito mais do que não tiveram: a possibilidade de estudar e muito afeto também. Esclareço que, nesse ínterim, comecei a ter problemas com bebidas alcoólicas. E durante duas décadas (dos 13 aos 33 anos) a barra foi pesadíssima, e causei muitos problemas.
Você, Mariana, além de poeta brilhante, é uma leitora extraordinária. Mostra o compasso certo desse Roseiral: "reconciliar os irreconciliáveis". Eu, revestido por você do mito de Telêmaco, combato a tirania patriarcal que subjuga as diferenças, que massacra suas crias e, tal qual Procusto, molda o outro às suas medidas. Desse modo, a figura do Pai – que pode ser entendida como o deus, como o pai, o patrão, o governante – recebe de volta a coroa de espinhos que impõe ao filho. Depois de cumprir a travessia das rosas escarlates e de suas inúmeras pedras, sinto-me aceitando cada vez mais a minha condição de poeta. Em relação à família, pais e irmãos, estou muito distante. Parece-me que é a melhor maneira de sentir saudade e de ser tratado com respeito. No mais, tenho dois filhos – Moisés e Gabriel – que são luz em minha vida. Que alegria despertam em meu ser! E com que facilidade alimentam a criança que existe em mim!

JIVM: "Há algo de perdição nessa busca, porque sei que nunca vou estar satisfeito, sei que o que procuro estará sempre se escondendo detrás da árvore seguinte, do prédio seguinte e até mesmo na minha sombra"

IGOR FAGUNDES – Disseste que, para o Roseiral, não aguarda nada, que não é de esperar. No entanto, muitos leitores esperavam um novo livro seu. Para além do que o inspirou a escrever e das elucubrações críticas que aqui fizemos, o que, em suma, afinal, podemos todos – os que já o leram e os que ainda não o leram – esperar de sua poesia? E será que José Inácio não espera nem por mais poesia em sua vida? Será que já não está chocando outros livros antes mesmo de este novo circular pelo Brasil? Tu nos deixa querendo mais poemas, mais livros, José Inácio...

JIVM – Quando falei que não aguardo nada para o Roseiral, quis dizer que não sou de ficar criando expectativas. Gosto de sair por aí, espalhando minha poesia. Não publico um livro e fico com ele dentro de casa, velando-o, esperando que algum crítico extraordinário venha descobrir o gênio que sou. Não acredito nisso. Nem tampouco fico na esperança de ganhar aquele prêmio tão desejado pela maioria. Eu corro atrás. Mesmo parado, dentro de casa, estou sempre pensando numa maneira de levar meus versos ao outro, através do mundo virtual.
Quanto aos que apreciam minha poesia, só posso dar garantia de que estarei sempre buscando... Buscando o verso que esteja afinado com meu sentimento, buscando a poesia de cada momento. Há algo de perdição nessa busca, porque sei que nunca vou estar satisfeito, sei que o que procuro estará sempre se escondendo detrás da árvore seguinte, do prédio da esquina e até mesmo na minha sombra. Eu vivo a poesia. Sinto que, a cada momento, ela apresenta-me uma nova face, ela inventa uma nova paisagem, ela me tira do chão e me conduz pelas esferas do delírio. Sinto que tenho um sorriso triste, mas a poesia me tira do sério, me deixa bobo, me deixa desse jeito que estou agora, fora do tempo, fora de mim. Completamente eu. E isto é o que há de melhor.
Escrevo pouco, uma média de 25 poemas por ano. O Roseiral saiu e já tenho no meu matulão umas três dezenas de poemas inéditos. Claro que outros livros virão. E vai ser assim até o último dia de minha existência. Sinto que a poesia é minha vida.


MAURÍCIO MELO JÚNIOR é escritor, crítico literário e jornalista. Apresenta o programa Leituras na TV Senado. Escreve para o jornal literário O Rascunho. Autor de vários livros, entre eles No país dos Caralâmpios (história, 2006) e Andarilhos (novelas, 2007).

LIMA TRINDADE é editor da revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br) e escritor. Publicou os livros Supermercado da Solidão (novela, 2005), Todo Sol mais o Espírito Santo (contos, 2005) e Corações Blues e Serpentinas (contos, 2007). É mestre em Teoria da Literatura pela UFBA.

VITOR NASCIMENTO SÁ é poeta e professor de Literatura. É um dos criadores e dirigentes do Grupo Concriz (http://www.grupoconcriz.blogspot.com/), equipe de poetas e recitadores da cidade de Maracás, na Bahia.

MARIANA IANELLI é formada em Jornalismo e mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Publicou os livros de poemas Trajetória de antes (1999), Duaschagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007) e Treva Alvorada (2010), todos pela editora Iluminuras.

IGOR FAGUNDES é poeta, jornalista, ensaísta e ator. É mestre em Poética pela UFRJ. Escreve para o jornal literário O Rascunho. Publicou Os poetas estão vivos (ensaios, 2008) e os livros de poemas Transversais (2000), Sete mil tijolos e uma parede inacabada (2004), Por uma gênese do horizonte (2006) e Zero ponto zero (2010).


Esta entrevista foi publicada na revista Correio das Artes, Abril/2010, Ano LXI, na cidade de João Pessoa, na Paraíba. Foi distribuída nas bancas de revista como encarte do jornal A União, no dia 25 de abril de 2010.






DANUZA LEÃO A REINVENÇÃO DA SIMPLICIDADE


Em entrevista exclusiva ao O POVO, a escritora Danuza Leão revela porque decidiu optar pela simplicidade, fala sobre sua decisão de não interagir com novas tecnologias e define elegância.



Raríssimas pessoas são tradução tão perfeita para glamour quanto Danuza Leão. Primeira modelo brasileira a fazer sucesso na Europa, esposa do dono de um império de comunicação no Brasil, locomotiva da sociedade, atriz de Glauber, amiga de Di Cavalcanti, relações públicas das boates Regine's e Hippopotamus, entrevistadora de TV, produtora de novelas, colunista social.
O mundo parecia pouco para Danuza quando ela se reinventou. Em 1992, lançou-se escritora com Na sala com Danuza, e não parou mais de escrever (muitas vezes falando desse universo de requinte com o qual sempre teve intimidade). Vinte anos depois, a capixaba lança novo livro, anunciando que a simplicidade é que é elegante. Nesta entrevista para O POVO, por telefone, de sua casa, no Rio de Janeiro, ela explica porque.
OPOVO - Como surgiu a ideia de escrever sobre a simplicidade?

Danuza Leão - Surgiu porque a minha vida começou a se simplificar sozinha. Não foi uma coisa de repente. Ela foi se simplificando, se simplificando e aí eu tive a ideia de fazer o livro. 


OP - Como esse processo de simplificação teve início?

Danuza - Na verdade, eu comecei esse processo na minha vida tem uns oito anos, quando eu vendi meu carro – e nunca mais tive um carro. A partir daí eu fui simplificando, pouco a pouco. Eu morava num apartamento muito grande, em que eu tinha um lugar para colocar minhas roupas, um closet, muito grande, e que eu ia comprando e enchendo... Aí eu comprava livros, ou ganhava de presente, ia botando na estante (porque tinha lugar). Aí um dia eu decidi me mudar desse apartamento para um outro, menor, porque era mais perto da praia, me deu vontade, tudo isso... E eu percebi que não ia caber as minhas coisas. Aí eu tive que simplificar, querendo ou não. Eu peguei os livros todos, separei tudo, mandei metade para um sebo. Só fiquei com aqueles que eu gosto muito, muito, muito. Me desfiz de mais da metade das minhas roupas e fiquei com o básico necessário. E a minha vida ficou muito melhor. 


OP - Não te doeu este ato de desprendimento, Danuza?

Danuza - Foi difícil, viu? Teve uma hora que eu olhei para as minhas coisas e disse: “Eu não vou conseguir!” (risos), “Eu não vou conseguir”. Aí eu deixei passar, fui dormir e tal. Passou um dia, passaram dois, três, até que eu disse: “É hoje! Eu vou começar hoje!”. Aí comecei com os livros. Dos livros passei pras roupas, pros sapatos, pra cozinha, pra louça, pra prata, pra panela, pra tudo.



OP - Você acha que o viver na simplicidade é uma tendência deste século XXI?

Danuza - Eu não sei não... porque esses novos ricos querem cada vez mais coisas, não é? Mas eu acho que..., pelo menos comigo a coisa aconteceu assim, eu passei metade da minha vida querendo encher minha vida com coisas e agora eu passo a outra metade querendo me desfazer das coisas e ficando só com o absolutamente necessário.


OP - E isso trouxe o quê de positivo para sua vida?

Danuza - Ah, para começar trouxe mais leveza! Parece até que meu corpo está mais leve. E, por exemplo, eu morava num apartamento grande, mas eu não precisava porque eu não recebia em casa (eu não tenho vocação para receber gente em casa). Então para quê que eu preciso de um apartamento de 300 metros quadrados? Não preciso, né? Então eu fui raciocinando que eu tava vivendo dentro, vamos botar isso entre aspas, “de uma vida bem mentirosa”. Eu tinha vestidos de noite – e eu não vou mais a lugar nenhum. Vestidos bordados, e não sei o quê, por que se eu não uso? Então eu fui raciocinando e resolvi viver de acordo exatamente como eu sou, pelo menos como eu sou atualmente.


OP - Só para deixar claro, simplicidade não é ausência de requinte. Seria ausência de quê?

Danuza - É ausência, acima de tudo, do supérfluo. Porque eu vivia com muitas coisas que eu poderia viver sem. Então para que viver com elas dentro de casa?


OP - Certo, mas faz-se necessário aqui uma distinção. Para você viajar pelo menos uma vez por ano para Paris não é supérfluo...
Danuza - Não, isso é básico!
OP - Isso que eu queria diferenciar. Essa simplicidade que você fala não é “franciscana”, digamos assim.

Danuza - (Risos) Não gente, de forma nenhuma. Não sou nenhuma monja tibetana morando em uma montanha, não (risos). Mas,por exemplo, olha só como é possível. Eu tinha uma prataria que uma vez, a cada 15 dias, vinha uma pessoa só para limpar as pratas. E ficava o dia inteiro esfregando as pratas que eu não usava. Não tem sentido, não é?


OP - Para muita gente, É tudo tão simples é uma atualização de Na sala com Danuza. Você também tem essa percepção?

Danuza - Não porque Na sala com Danuza, na verdade, tinha coisas que não mudam. A maneira de comportamento, do sentar à mesa... nada disso muda. Agora, aconteceram coisas novas, a tecnologia... 


OP - Em É tudo tão simples você fala muito de sua pouca intimidade com essas novas tecnologias, com as redes sociais, com os smartphones... Como você vê o advento dessas tecnologias?

Danuza - Eu não tenho o menor conhecimento porque eu não estou nesse mundo. Este universo não é o meu. Até porque eu fico vendo, pessoas que me contam, que eu ouço, que passam o dia inteiro no Twitter. Eu não quero passar o dia inteiro no Twitter! E me parece, segundo me contam, que elas fazem assim: “Agora eu vou ao cinema”, “Agora eu vim da praia”. Bom, pelo amor de Deus, né? Não dá para entender... Eu não quero ter minha vida devassada, que saibam se eu fui à praia e também não quero saber se o outro foi à praia não.


OP - Não tem nada nessas novas tecnologias que lhe sinalize charme?

Danuza - Não. Como eu lhe disse, é um universo que eu não frequento, então eu não sei bem... Mas o meu filho me deu um iPod, aquele que você bota 5 mil músicas dentro. Aí eu chamei uma pessoa, paguei, para botar todos os meus CDs, passar para o computador e botar lá dentro. Muito bem, isso foi feito. Aí eu saí de casa com aquele aparelho, que parece uma caixa de fósforos, e eu enlouqueci (risos). No segundo dia, eu liguei para o meu filho e disse: “Vou devolver porque eu não quero mais saber disso na minha vida”. Cê sabe o que é que é, eu não consigo olhar para aquele aparelho e lembrar que ele tem 5 mil músicas lá dentro, eu enlouqueço. 


OP - Você não consegue imaginá-lo com tanto conteúdo?

Danuza - Eu gosto de entender as coisas e eu não gosto daquilo. E, por outro lado, eu estava lendo outro dia uma matéria no jornal, que os grandes conhecedores de música estão todos voltando para o LP. Eu achei curioso isso. Eu não dou palpite, mas é curioso, não é?


OP - Estamos passando por uma onda de retorno ao século XX muito forte.

Danuza - Pois é. É uma reação a esta tecnologia, que está demais, né? No livro eu conto que teve um dia em que eu estava numa casa, que tinha seis pessoas, e cada uma estava com o seu aparelhinho na mão. E eu me senti totalmente sozinha. Cada um brincando com seu brinquedinho, né? 


OP - Essa falta de educação no uso dos brinquedinhos tecnológicos, digamos assim, é uma das questões que mais preocupam as pessoas hoje em dia.

Danuza - Pois é. Mas eu vou te dizer, em vez de me preocupar, eu não deixei eles entrarem na minha vida, porque eu decidi que não é a minha praia.


OP - Mas você tem um celular?

Danuza - Não, eu não tenho um celular. Nem celular, nem smartphone, nada disso. Só tenho um computador porque eu tenho que ter, né? Para escrever, e mandar emails e, às vezes, se precisar de uma informação, ir no Google, e mais nada.


OP - Em uma de suas crônicas recentes, você passa certo desencanto com a Paris que você encontrou na viagem que fez este ano...

Danuza - Ah, mas é verdade. Paris mudou. Eu não vou deixar de ir para Paris por causa disto, mas que mudou, mudou. O bairro onde eu fico sempre, e que é um bairro familiar, que tinha a padaria, a peixaria e o açougue, e que era uma coisa muito típica de Paris, não tem mais porque chegaram as lojas das grandes grifes e foram comprando tudo e agora descaracterizou completamente. 


OP - O mundo mudou, de uma forma geral, não é? Como é que você definiria, então, elegância, em tempos tão mudados?

Danuza - Olha... É tão difícil definir elegância, né? Agora, ou antes, ou no futuro, ou no passado é tão difícil (pausa). Mas deixa eu falar de uma coisa que aconteceu agora, que foi o Oscar – você deve ter visto. Sem a menor dúvida, e eu prestei muita atenção, a única mulher elegante no Oscar era aquela atriz, a Gwyneth Paltrow, que estava com um vestido branco. Ela não usava nem brinco, ela tinha apenas uma pulseira, um anel e mais nada. Ela não usou brinco, ela não usou colar, ela não tinha bugiganga nenhuma em cima dela, o cabelo dela era liso, só com um rabo de cavalo atrás... e ela estava simplíssima e estava chiquérrima.


OP - Você achou todas as outras excessivas?

Danuza - Umas peruas, né!


OP - Até a Angelina Jolie?

Danuza - A Angelina Jolie inclusive, com aquela perna pra frente.


OP - E a premiada como melhor atriz, Meryl Streep?

Danuza - A Meryl Streep enlouqueceu!


OP - Então, voltamos à nossa questão inicial: a simplicidade é elegante. É isso que fica de aprendizado?

Danuza - Eu acho. Porque hoje em dia, quer dizer já tem um bom tempo, que eu não consigo... Eu vejo uma mulher de brinco e acho um equívoco. Nem brinco eu uso mais. Porque ficou muito caracterizado como perua. Perua usa brinco, usa pulseira, usa colar, usa anel e usa tudo junto. Aí não dá. Se você não tiver cabelo nenhum, nem franja, nem um corte chamativo, um cabelo muito expressivo, você ainda pode botar um brinco étnico, um brinco que você comprou na Índia, ou na África, uma coisa assim, é interessante, Mas botar aquelas coisas de ouro... com pedras... Ah, eu acho o fim.


OP - No começo da nossa entrevista, você disse que esses novos ricos, esses emergentes querem comprar demais. Na sua opinião, esta compulsão pelo consumo não seria por desconhecimento?

Danuza - Querido, quem nunca teve quer ter, não é? Quem sempre teve, muito pelo contrário, quer mais uma vida mais simples, mais despojada, né? Essas mulheres, por exemplo, que ficam querendo... Que chegam num lugar e pedem logo um champanhe... É porque não tomaram o suficiente na vida delas. Porque se tivessem tomado, poderiam tomar uma caipirinha agora. Quem nunca comeu melado...